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JAMES BOND: apenas uma imagem da sociedade inglesa?


análise semiótica e astrológica do personagem de Ian Fleming

introdução


Como acontece a qualquer campo de conhecimento que seja relativamente muito novo (1), a Semiótica se esforça para definir seus conceitos e objetivos de uma maneira clara e unânime e, assim, conquistar seu status de disciplina. Mas, nesta luta, raramente se encontra sinais de consenso – o que no entanto não se configura como prova da sua infecundidade. Ao contrário: mesmo não tendo os seus pesquisadores e criadores chegado a esta unanimidade teórica ideal, divergindo boa parte das vezes com relação aos seus conceitos e objetivos (o que tem contribuído em muito para a incompreensão da sua verdadeira natureza), a Semiótica tem dado prova da sua legitimidade e do seu valor aos desvendar os significados que porventura se encontram velados e ocultos por detrás dos mais diversos símbolos manipulados pelo Homem e que se encontram expressos nas mais diversas manifestações culturais: na literatura, no cinema, na televisão e, como muitos dos seus criadores gostam de frisar, no uso (ou abuso) que em particular o marketing, a mídia e a imprensa fazem dela, transmitindo ao leitor ou ao espectador, de maneira subliminar ou até inconsciente, um determinado significado que passa despercebido numa primeira leitura.


Se a Semiótica não tivesse o seu valor, não poderíamos conquistar através de uma leitura mais atenta o verdadeiro significado que encontra expresso por um signo ou símbolo, seja este textual ou pictórico. O verdadeiro valor disto que chamam de Semiótica está aí: em decifrar o significado que porventura se encontra criptografado por detrás de um texto ou de uma imagem aparentemente ingênua – visto que ela pode ter sido urdida com intenções insuspeitadas, colocando o semiótico no posto de um verdadeiro investigador dos valores, idéias e ideologias que se encontram submersos por detrás dos signos e que, como tal, assume a missão de resgatá-los do fundo do seu contexto social e de trazê-los até a superfície, tornando, deste modo, o contexto em texto, o ilegível em legível, o oculto em aparente.


Vários foram os investigadores que se colocaram à altura deste posto: Ferdinand de Saussure, Roland Barthes, Roman Jakobson, Edgar Morin dentre outros e, sobretudo, Umberto Eco que se empenhou em particular a examinar os fenômenos de comunicação e da cultura de massa.


É através dele que podemos conhecer a análise semiótica da obra literária de Ian Fleming e de todos os significados que se encontravam até então ocultos por detrás do seu protagonista: o agente de espionagem 007, James Bond. É através desta análise que podemos descortinar os valores da sociedade inglesa. E é através desta análise que podemos, mais uma vez, provar o vigor e a importância da semiótica e dos seus propósitos.


Contudo, se considerarmos que a estrutura do céu no instante de nascimento de um indivíduo determina o modo como ele em particular interpreta o mundo ao seu redor - já que no século XIII o filósofo e astrólogo árabe Ibn’ Arabi (2) tomou os sete planetas celestes como os correspondentes naturais das sete funções da alma – entenderíamos não tão somente que a disposição dos astros no instante do nascimento revela a disposição natural da cognição individual, mas também – e isto aqui é o mais importante - que os signos culturais devem ser determinados também pelos próprios valores pessoais do agente cultural, por tudo aquilo que sua própria mente vislumbra. Sob este ponto de vista, entenderíamos que, enquanto a semiótica revela o quanto os signos culturais se encontram determinados pelos valores sociais, já a astrologia revela o quanto estes mesmos signos culturais se encontram determinados pelos valores pessoais do autor. Neste sentido, como disciplinas propriamente interpretativas, percebemos que a semiótica e astrologia são disciplinas irmãs.


O propósito deste trabalho é este: mostrar a interseção entre a semiótica e a astrologia e o quanto ambas nos ajudam a interpretar a obra de um artista. No caso, o personagem James Bond, criado por Ian Fleming.

sobre a Astrologia


O sistema astrológico sempre foi considerado uma espécie de catálogo onde o ser humano foi registrando e depositando, ao longo dos séculos, todas as experiências que lhe eram mais recorrentes e fundamentais. E se analisarmos mais de perto um dos componentes deste sistema – o sistema das Casas Astrológicas – perceberemos que ele descreve exatamente a perspectiva que se abre entre o sujeito nascido e o mundo em torno, isto é, entre um posto de observação e a esfera celeste, demarcando por isto mesmo um campo de atenção.


Por isso, se há alguma estrutura do mapa astrológico capaz descrever e diagnosticar os diferentes campos da atenção humana, esta é exatamente aquela de que se compõe o sistema das Casas Astrológicas. É ela quem descreve os possíveis campos da atenção individual, ou melhor, as perspectivas humanas fundamentais, através das quais tudo é percebido, sentido e até mesmo alterado.


Mas que perspectivas fundamentais são estas, através das quais cada indivíduo, a sua maneira, procura ver o mundo e se orientar?


CASA 1

sob a perspectiva da identidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS PERSONALÍSTICO

se mobiliza pela imagem que tudo passa e projeta


CASA 2

sob a perspectiva da vitalidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS SENSORIAL

se mobiliza pelo aspecto físico e material das coisas


CASA 3

sob a perspectiva da comunicabilidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS LINGÜÍSTICO

se mobiliza pelas idéias explicitadas e ainda implícitas


CASA 4

sob a perspectiva da interioridade

caracteriza o indivíduo de VIÉS EMOCIONAL

se mobiliza pelas exigências e pressões emocionais


CASA 5

sob a perspectiva da capacidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS VOCACIONAL

se mobiliza pelo desempenho e méritos próprios


CASA 6

sob a perspectiva da organicidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS SISTÊMICO

se mobiliza pelo todo esquematizado e o seu funcionamento equilibrado


CASA 7

sob a perspectiva da alteridade

caracteriza o indivíduo de VIÉS INTERPESSOAL

se mobiliza pela reciprocidade e pelos diversos níveis de relacionamento


CASA 8

sob a perspectiva da adversidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS TRANSFORMADOR

se mobiliza por processos que gerem mudanças e alterações


CASA 9

sob a perspectiva da universalidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS LEGISLATIVO

se mobiliza por princípios e regras gerais que gerem certezas e orientem


CASA 10

sob a perspectiva da coletividade

caracteriza o indivíduo de VIÉS SOCIAL

se mobiliza pelas exigências e pressões sociais


CASA 11

sob a perspectiva da posteridade

caracteriza o indivíduo de VIÉS PROJETIVO

se mobiliza pelas perspectivas futuras e pelo projeto a realizar


CASA 12

sob a perspectiva da finalidade

caracteriza o indivíduo de VIÉS MACROSCÓPICO

se mobiliza por forças maiores que determinam o fim e o rumo de tudo


Estas perspectivas se tornam determinantes para cada indivíduo à medida que um dos sete planetas da Astrologia Tradicional se coloca em uma destas Casas do seu mapa natal (a saber, sol, lua, mercúrio, vênus, marte, júpiter e saturno), configurando assim os focos naturais da sua atenção e conferindo um sentido de importância maior a estas experiências e não as outras, representadas pelas Casas que se encontram vazias.


Afinal, da mesma maneira que as constelações celestes sempre serviram e ainda servem de guia para orientar os navegadores, quem sabe elas prefigurem - de uma maneira surpreendente e inexplicável - esta constelações de valores pessoais que nos move ao longo de toda nossa existência.


É o que pretendo demonstrar através da análise semiótica que Umberto Eco faz de James Bond.



sobre a Semiótica


Se nos utilizarmos da imagem de um iceberg proposta por Jean-Marie Floch (3) para definir tanto a palavra quanto o conceito publicitário (e que também pode ser usada para esclarecer o que seja a Semiótica), veremos que a parte emersa deste iceberg corresponde aquilo que passamos a conceber como as Ciências da Linguagem e que a sua parte imersa corresponde, a grosso modo, aquilo que concebemos como as Ciências da Sociedade – sendo a Semiótica exatamente aquela “ciência” que se ocupa propriamente da significação que os signos ganham quando são considerados imersos e revestidos por valores políticos, sociais e econômicos.


Desse modo, percebemos que, enquanto as Ciências da Linguagem se ocupam propriamente do sentido dos signos e visam o seu aspecto denotativo, a Semiótica – por se ocupar da significação que os signos ganham quando são considerados imersos num contexto social – visa o aspecto conotativo dos mesmos. Uma conotação específica, como vemos: uma conotação de natureza social.


Para alguns dos seus pensadores, se estabelece, assim, um diferença vital entre sentido e significação, visto que o sentido de um signo é representado propriamente pelo seu aspecto denotativo, enquanto a significação do signo se dá pelo seu aspecto conotativo social. Por isso, a denotação ou conotação de um signo sempre dependerá do contexto em que ele situa ou é interpretado, ou seja: se considerarmos o signo de acordo com a sua representação própria e que lhe é inerente, estaremos falando do sentido de um signo; porém, se considerarmos o mesmo de acordo com uma representação social que lhe é dada, estaremos falando da significação de um signo.


Talvez seja interessante exemplificar o que se encontra explicado acima, visando um melhor entendimento. A título de exemplificação, nos utilizaremos de um signo que terá, como veremos mais adiante, uma função capital dentro desta monografia que aqui se desenvolve: a cor preta.


A cor preta, considerada em seu contexto natural, é sempre interpretada como “ausência de luz”, e o seu sentido é sempre de escuridão, trevas. Porém, este mesmo signo – a cor preta – considerado em seu contexto social, é freqüentemente interpretado como “ausência de fatores sociais considerados luminosos”, tais como limpeza, clareza, justiça e etc e, por isso, a sua significação é de exclusão social ou racismo.

Por isso que a Semiótica pode ser entendida (4), tal como definiu Ferdinand de Saussure, como “a ciência que estuda a vida dos signos no interior da vida social”. Por isso, deve-se ler, nas entrelinhas do texto e nas entranhas do signo, todas as intenções sociais que estão subentendidas. Afinal, como diz Julien Greimas, “fora do texto não há salvação”(4). A Semiótica se ocupa, assim, em descobrir e revelar as implicações ideológicas que estão embutidas em todos os signos e em qualquer linguagem, seja verbal ou visual. Ela estuda as condições de produção e de compreensão dos sentidos, ou melhor, da significação que toda mensagem ganha quando considerada num contexto social, tentando descobrir e discernir as suas regras, suas leis e suas invariantes – em suma, a sua estrutura primordial.


Esta definição, acima descrita, não expressa, como já havia dito, uma unidade consensual entre os diversos pensadores que se encontram neste ramo do conhecimento e, por isso mesmo, talvez seja interessante remontarmos um pouco o seu desenvolvimento histórico, a sua trajetória:


1) Ferdinand de Saussure (1857-1913) funda a tese de que a língua é uma instituição social, enquanto a palavra é um ato individual. Considerando a língua como parte integrante de uma instituição social, cabe estudar todo o sistema de valores sociais que interagem com os signos e que lhe dão um novo sentido;


2) Roland Barthes (1915-1980) se lança na execução deste projeto e define que, para o estudo da mídia, dois fatores são fundamentais para o entendimento da significação: significante-significado e denotação-conotação. Cada signo apresenta este duplo aspecto: um perceptível (o significante); o outro embutido e trazido por este (o significado);


3) Algirdas-Julien Greimas (1917-1992) distingue ainda mais o fato de que, para além do aspecto denotativo da mensagem, há um aspecto conotativo, dado pelas situações sociais;


4) Claude Lévi-Straus (1958-1973) pressupõe que a estrutura da linguagem e do mito é determinada pela família e pela genética, ou seja, por fatores psicológicos e genéticos;


5) Roman Jakobson (1896-1982) leva essa pressuposição mais adiante, estabelecendo uma relação entre a estrutura lingüística e genética e as mensagens que cada uma transmite, e isto na década de 1970, quando as descobertas sobre o DNA acabam explicando também o patrimônio genético como um programa ou código que transmite informação;


6) Edgar Morin (1921- ) introduziu nas referências francesas o conceito de indústria cultural. Foi um dos primeiros a refletir sobre a importância que assume a mídia e a questionar os valores dessa nova cultura. Interessa-se por cibernética e ciências cognitivas e também por astrologia (5);


7) Umberto Eco empenha-se de maneira constante no estudo dos fenômenos de comunicação e da cultura de massa (6). Em ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA de Roland Barthes (7), Umberto Eco faz uma análise semiótica da obra de Ian Fleming, cujo personagem principal é o nosso tão popular agente secreto 007, conhecido como James Bond e que passo a resumir agora.

Umberto Eco e James Bond: um detetive seguindo os passos de um espião

Para Umberto Eco, a estrutura da obra de Ian Fleming pode ser comparada a de uma máquina: 1) que funciona a base de unidades bastante nítidas e simples que correspondem aos personagens e sua interação; 2) movida por regras rigorosas de combinação que correspondem à seqüência com que a trama se desenvolve. Em suma, para este autor, toda a obra em questão é composta por pecinhas básicas que correspondem aos personagens e tipos que acabam se posicionando um em frente ao outro, formando pares específicos que revelam uma oposição de valores e significados. Umberto Eco se refere a 14 pares e, em particular, aos pares “Bond & M (seu chefe)” e “Bond & o Mau”, dos quais os outros pares são quase todos derivados.


o par BOND e M, seu Chefe

Este par revela uma relação cuja significação é a de dominado & dominante, pois M é detentor de uma informação total concernente aos acontecimentos que Bond desconhece e não possui, partindo sempre para executar suas diversas missões em condição de inferioridade em relação à onisciência do seu chefe. M representa, assim, valores tais como o Dever, a Pátria, a Disciplina e o Método (fazendo frente a tendência típica de Bond em confiar na improvisação e de se levar pelo instinto, inclusive sexual). Aliás, é uma fidelidade obstinada em cumprir seu dever em nome da pátria inglesa – fidelidade esta que raramente contesta – que lhe permite superar certas provas inumanas sem exercer faculdades sobre-humanas, se tornando por excelência um herói.


o par BOND e O MAU

Este par revela a sua significação na medida em que, colocado por M na rota do Dever a todo preço, Bond se depara e se confronta com o Mal. Bond representa o que Umberto Eco chama de “uniformidade”, pois ele possui beleza, certa retidão típica da postura inglesa, ação precisa e virilidade. Por isso, para este autor, o Mau representa a “deformidade” pois sempre se apresenta como monstruoso, poderoso, dotado de uma inteligência ou natureza excepcional e que, depois, se revela impotente, quando se torna vencido. Ademais, o Mau se distingue de Bond por uma série de características fisionômicas, raciais e geográficas: é habitualmente de sangue mestiço e suas origens são complexas e obscuras; é assexuado, pervertido ou homossexual, apresentando não raras vezes uma deformidade facial que acentua a própria estranheza; dotado de qualidades excepcionais de invenção que lhe permite empreender atividades escusas e tecnológicas que lhe rendem imensa fortuna e com que pretende abater a Inglaterra ou o Mundo Livre em geral.

Por isso, para Umberto Eco, estes pares de opostos revelam uma “divisão interna” do próprio personagem James Bond: afinal, a sua Natureza Excepcional contraposta a sua postura anglo-saxônica tão Medida, bem como o Risco e a Programação a que incessantemente se submete, significam uma contraposição existente entre a Improvisação e a Disciplina - ou entre a Deformidade e a Uniformidade. Todas estas características – que tem seus devidos correspondentes astrológicos, como veremos - manifestam-se nos gestos e decisões do próprio James Bond, numa luta permanente entre se lançar a cabeçadas e a observar e obedecer atenciosamente o método tanto do seu chefe M quanto do Mau. É esta luta interna que torna o personagem fascinante, que o humaniza frente a M e ao Mau e que, por sua vez, revela a ótica muito própria de Ian Fleming em relação ao mundo.


Para Umberto Eco, dever e sacrifício aparecem como elementos de um debate interior cada vez que Bond sabe que deverá fazer fracassar os planos do Mau com risco de sua vida e, neste caso, é o ideal patriótico (Inglês ou do Mundo Livre) que tem primazia, revelando assim a preocupação racista em realçar a superioridade do homem britânico. No final de todas as peripécias pelas quais passa, quando inclusive perde a Mulher que sempre salva, Bond acaba recobrando, quer queira quer não, a pureza do celibatário anglo-saxônico. Desse modo, a raça inglesa permanece ao abrigo da contaminação estrangeira – sendo esta a significação que obra de Ian Fleming tem para os olhos de Umberto Eco, sob a análise atenta da semiótica.


No entanto, para Umberto Eco, a obra fílmica rodada sobre o personagem James Bond não honra totalmente o original escrito pelo seu criador, Ian Fleming, pois nos filmes – e não no texto literário - a mulher sempre acaba nos braços do nosso espião. Ainda assim, vale a pena dar uma olhada nos filmes – na obra segunda e derivada – tentando investigar o quanto elas honraram ou não o texto original e o quanto elas retrataram com fidelidade ou não a visão muito particular do autor.



James Bond: semiótica e astrologia


Ao examinar em particular três filmes deste personagem, SÓ SE VIVE DUAS VEZES, 007 CONTRA GOLDFINGER e 007 CONTRA O SATÂNICO DR . NO, percebe-se, desde os primeiros minutos de rodagem, que o inimigo secreto sempre aparece personificado na cor preta enquanto o nosso agente secreto - ou a causa que ele assumirá - sempre aparece personificada, é claro, na cor branca. Este é apenas um pequeno elemento estético; contudo, reafirma a mesma significação da obra original, interpretada semioticamente por Umberto Eco: de que o personagem James Bond é um signo que carrega a significação de Pureza, Perfeição e Uniformidade, fazendo um contraponto com o inimigo que sempre é mestiço ou negro, mas sobretudo estrangeiro, cujas características estão carregadas de imperfeição e deformidade.


É o que assistimos nos primeiros minutos do filme SÓ SE VIVE DUAS VEZES, quando os astronautas, vestidos numa roupagem branca, ficam sob a ameaça de um inimigo oculto que aparece das profundezas do espaço cósmico, completamente negro; já em 007 CONTRA GOLDFINGER Bond tira seu uniforme preto e aparece de terno branco, depois de executar todas as suas artimanhas, de onde sai impecável e ileso; e em 007 CONTRA O SATÂNICO DR. NO, negros cegos trazem a morte para o homem e a mulher vestidos de branco.

Contudo, a noção fisionômica – quero ressaltar desde já – não aparece somente sob o signo da deformidade, mas sim sob o signo da ocultação: em SÓ SE VIVE DUAS VEZES,

os astronautas de branco estão sob a ameaça de um inimigo oculto que ainda não tem rosto. Até praticamente o final do filme, o Mau não se mostra, vindo a revelar seu próprio rosto somente no momento em que afirma: “só se vive duas vezes” - que é, aliás, o título do filme, demarcando, através deste expediente, o quanto a questão da revelação fisionômica é determinante na obra; fisionomia que se revela então através de uma imensa cicatriz que o personagem malévolo carrega, Blofed.


Em 007 CONTRA O SATÂNICO DR . NO, o Mau surge inicialmente sem rosto, sob a forma do poder tecnológico, até se personificar na figura do malévolo Dr. Julius No, representado então por uma mão mecânica que lhe oculta sua real deformidade. Já em OO7 O ESPIÃO QUE ME AMAVA e em 007 CONTRA O FOGUETE DA MORTE, o vilão é Jaws – e este possui uma poderosíssima arcada dentária metálica que brota de sia face.


Mas se a uniformidade e a deformidade sobretudo fisionômicas existentes nestas narrativas são signos que, de acordo com a análise semiótica de Umberto Eco, lhe caracterizam de modo expressivo, cabe apontar para o fato de que ambos deveriam estar sob a mira e sob a ótica de Ian Fleming, o autor, para quem o rosto, a fisionomia e a imagem humana não poderiam constituir uma peça fortuita e trivial da obra, mas sim fundamental. E se assim é, cabe considerar o seu mapa astrológico (8), pois mesmo sendo um mapa hipotético, calculado em horário duvidoso, nele vemos que um planeta – no caso, saturno – aparece na Casa I, o que caracteriza, conforme vimos no resumo acima, o indivíduo que aqui chamei de VIÉS PERSONALÍSTICO, aquele cuja perspectiva de mundo enfoca a IDENTIDADE, se mobilizando pela IMAGEM QUE TUDO PASSA E PROJETA. Este é o sujeito para quem a diversidade dos tipos humanos, as fisionomias, os espelhos, as máscaras, os modos de se comportar e de se vestir e sobretudo o estilo pessoal trazem informações importantes a respeito do mundo e para quem as situações que implicam ocultação ou revelação da identidade marcam de modo contundente não tão somente a própria existência mas também a própria obra. Um cineasta que tem a mesma configuração astrológica presente no mapa é Orson Welles (9) e em Cidadão Kane, sua obra prima, o personagem em questão é apresentado, sem que saibamos inicialmente, através da imagem projetada de um documentário que passa a ser comentado logo depois por um jornalista cuja fisionomia se mantém sempre oculta, nas sombras.


Isto constitui um indício significativo de que Ian Fleming tenha mesmo nascido no horário sob hipótese ou pelo menos em horário aproximado. Mas tal indício se reafirma se considerarmos uma outra observação feita por Umberto Eco. Para este autor, a estrutura de um romance policial antes da obra de Fleming era composta de um policial, de sua equipe, de seus métodos de trabalho e a série de situações imprevisíveis que os levavam até o criminoso ou culpado. A partir de Fleming, no entanto, desde o início já se conhece o culpado e criminoso e todas as suas artimanhas. Daí vem a pergunta: se no novo romance policial proposto por Fleming já não há mais o mistério que levava o leitor a ler as próximas páginas, como se explica o sucesso de sua obra, onde não há mistério e tudo o que poderia ser misterioso já está de antemão exposto e colocado?


Se não há nenhum mistério a ser desvendado e se a estrutura de todo um romance policial pode ser considerado extremamente simples e até mesmo óbvio, sempre repetindo um esquema e produzindo redundância, jamais propondo algum tipo de reflexão ou pensamento, como é que ele pode causar sensações e surpresas?


Somente pelo seguinte: na obra de Fleming, o prazer consiste em ver com que achados e com que virtuosismo James Bond chegará ao final da sua missão, enganando e vencendo o Mau. Diverte-nos e nos ocupa da mesma maneira que faz um jogo, seja este qual for: já conhecemos todas as peças, já conhecemos as regras e inclusive o gabarito dos adversários que estão em disputa – exceto os lances e as tacadas que continuarão demonstrando como o melhor sempre se torna vencedor.


Aliás, o sucesso mesmo de 007 está apoiado nisto: em apenas divertir, como um jogo, onde já se sabe de tudo – menos das táticas de que agora o agente vai se utilizar. Para Umberto Eco, o fato da obra não propor nenhum mistério a ser desvendado e pelo fato do romance policial ser de uma redundância absoluta e ainda mais por ela possuir uma característica típica dos jogos, ela se torna um instrumento perfeito para a distração e a evasão e que funcionam muito bem no domínio das comunicações de massa.

No entanto, se a obra tem a característica de um jogo e se ela se encontra urdida por uma noção tática onde o virtuosismo acaba demostrando que o melhor sempre sai vencedor e se, ademais, um outro par de contrários que caracteriza a obra é composto pela Improvisão & Disciplina, cabe apontar para o fato de que o mapa astrológico de Ian Fleming tem também planetas na Casa V, no caso, mercúrio e marte - e o sujeito que tem planetas nesta Casa é aquele que, conforme vimos no capítulo acima, vê a vida pela perspectiva da CAPACIDADE, se mobilizando pelo DESEMPENHO E MÉRITOS PRÓPRIOS, vindo a caracterizar o indivíduo cujo viés chamei aqui de VOCACIONAL. Em suma, este é o sujeito para quem a luta, o esforço, a coragem, as conquistas, as medalhas e os méritos carregam e dão informações importantes a respeito do mundo e para quem os episódios que configuram situações de desafio, de vitória e de fracasso marcam de modo indelével toda a sua existência – e também sua obra. Um exemplo clássico de tal tipo de indivíduo é Winston Churchill (10) que tem saturno localizado nesta mesma Casa e que ficou conhecido não só por sua habilidade estratégica mas também por suas diversas fotos onde exibe dois dedos compondo a letra V: V de Vitória.


Tudo isso me leva a crer que o mapa astrológico de Ian Fleming não seja tão duvidoso assim e que, se a semiótica se ocupa do aspecto propriamente conotativo de um signo como muitos sustentam, a astrologia, por contraposição, parece se ocupar do aspecto propriamente denotativo dos signos adotados pelo artista – signos que denotam sua visão natural de mundo.


Portanto, James Bond não é apenas uma imagem que retrata a sociedade inglesa: ele é fruto da cosmovisão própria e inerente a Ian Fleming.



BIBLIOGRAFIA


(1) vide A CIÊNCIAS E AS CIÊNCIAS, de Gilles-Gaston Granger – Ed Unesp,1994; INTRODUÇÃO HISTÓRICA À FILOSOFIA DA CIÊNCIA, de John Losee – Ed. Itatiaia, 1992; A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO, de Gaston Bachelard – Ed. Contraponto, 2001.

(2) A ALQUIMIA DA FELICIDADE PERFEITA, de Ibn Arabi - Ed Landy, 2002.

(3) SEMIÕTICA, MARKETING Y COMUNICACIÓN, Bajo los Signos, las Estrategias, de Jean-Marrie Floch – Ed. Paidos, Buenos Aires, 1993.

(4) HISTÕRIA DAS TEORIAS DA COMUNICAÇÃO, de Armand Mattelart e Michèle Mattelart – Ed. Loyola, 1998

(5) O RETORNO DOS ASTRÓLOGOS, de Edgar Morin e outros – Ed Moraes, Lisboa, 1972.

(6) TRATADO GERAL DE SEMIÓTICA, de Umberto Eco – Ed. Perspectiva, 1980; APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS, de Umberto Eco – Ed. Perspectiva, 2000; OBRA ABERTA, de Umberto Eco – Ed. Perspectiva, 2001.

(7) capítulo James Bond: uma Combinatória Narrativa, de Umberto Eco, in ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA, de Roland Barthes e outros – Ed Vozes,1976.

(8) mapa de Ian Fleming: http://www.astro.com/astro-databank/Fleming,_Ian

(9) mapa de ORSON WELLES: http://www.astro.com/astro-databank/Welles,_Orson

(10) mapa de Winston Churchill: http://www.astro.com/astro-databank/Churchill,_Winston



FILMOGRAFIA


- SÓ SE VIVE DUAS VEZES = produção: Albert R. Broccoli e Harry Satzman, 114 minutos - Warner Home Vídeo – 1967

- 007 CONTRA GOLDFINGER = produção: Albert R. Broccoli e Harry Satzman, 108 minutos - Warner Home Vídeo - 1964

- 007 CONTRA O SATÂNICO DR . NO = produção: Albert R. Broccoli e Harry Satzman, 111 minutos - Warner Home Vídeo - 1962

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